Estava lendo a obra de Suetônio, historiador romano, e uma passagem sobre a vida de Júlio César me chamou a atenção.
Mas antes de comentar, fica a recomendação de leitura - o contato com a vida dos homens do período clássico coloca a nossa vida moderna em perspectiva, nossas prioridades, nossos sentimentos. A modernidade é antes de tudo um véu que esconde muito da nossa natureza humana e é importante entrar em contato com esses instintos de tempos em tempos. Sobretudo nessa nossa década, enfim…
Breve contexto, Júlio César lutava a Guerra Civil que o faria o líder incontestável de Roma e ele planejava um desembarque na África. Parece uma cena normal para esses tempos, mas essa operação militar especificamente era vista com muito temor pelas tropas romanas, não por falta de confiança no gênio militar de Júlio César, mas pelo seu adversário na região: Metellus Scipio.
Esse Scipio era da mesma família do próprio Scipio Africanus, o homem que havia destruído Cartago de uma vez por todas e dado um fim à Segunda Guerra Púnica.
É sempre bom explicar porque isso significa muita coisa. Os Cartaginenses tinham sido os maiores rivais que os romanos já haviam enfrentado até então e o triunfo nas Guerras Púnicas sacramentou a hegemonia latina dentro do Mar Mediterrâneo. Desde essa vitória, uma profecia havia sido anunciada: Scipio e seus descendentes jamais poderiam poderiam ser derrotados naquele continente, algo muito sério para os romanos.
Entretanto, César era um tomador de riscos sem igual e não se deixou abalar pela fala dos sacerdotes e dos generais. Muitos dos seus aliados tentaram trazer sugestões alternativas, invocaram o nome dos deuses para travar seus planos e argumentaram sobre tudo que era possível
César, como de costume, ignorou os avisos e seguiu com seus planos. Aí que entra a passagem do Suetônio
No momento do desembarque, a atmosfera estava toda tomada de tensão, uma invasão à África era um atentando contra os deuses e então, eis então que o pior aconteceu. Ao desembarcar do seu barco, Júlio César caiu de cara no chão.
Sim, ao pular do convés da galé no chão quente e arenoso da África, o general se estabacou. Pessoalmente, eu imagino que nesse exato momento, os supertisciosos em volta suspiraram alto, alguns devem ter se desesperado imediatamente e os legionários se sentiram tomados pelo desejo de voltar para o conforto da Itália, afinal, existe um presságio pior para uma campanha militar do que assistir uma cena dessas logo no início?
Porém, Júlio César mostrou seu verdadeiro caráter nesse exato momento. Antes mesmo de se levantar, ele encheu as mãos com terra e gritou para as tropas:
- Ó África, veja como eu te seguro firmemente!
O relato do Suetônio foi de que essas simples palavras foram o suficiente para transformar um mau presságio no melho presságio possível, os legionários estavam convencidos. Alguns riram aliviados, outros reconheceram nele a liderança fenomenal de sempre, mas todos seguiram marchando.
Dali pra frente, César passou a debochar abertamente da profecia sobre a família Scipio. Inclusive, pode parecer surreal a cena, mas é preciso acreditar, afinal, depois de duas derrotas humilhantes em sua terra natal, o rival Metellus Scipio, humilhado, se suicidou.
(Esse suicídio alguns anos depois foi comentado por Sêneca, o que também daria um bom texto, mas vou deixar para outra oportunidade.)
O fato é: algumas simples palavras converteram César em um abençado aos olhos dos homens, sendo que momentos antes, ele parecia caminhar para a própria ruína. Para todos os fins, literal e metaforicamente, o ponto mais baixo dessa campanha militar foi o momento em que ele estava com o rosto plantado na terra.
Essa história romana serve para exemplificar perfeitamente a marca de grandes líderes, enquanto a dimensão do real permanece eternamente oblíqua e enevoada, as suas ideias permanecem cristalinas. Essa qualidade é justamente o elemento que permite, mesmo diante das situações mais adversas, que a sua visão possa guiar os seus seguidores.
Quando a cabeça de Júlio César enconstou no chão ele não pensou nos agouros dos profetas, ou no medo que seus legionários sentiam. Ele não pensou no calor africano, muito menos na dor da queda - ele pensou que a África lhe pertencia.
Essa é a marca de grandes líderes.
- Victor Antoun, 2024